domingo, 20 de junho de 2010

Saramago

SARAMAGO
Desde a última sexta-feira, recebo mensagens de pessoas preocupadas comigo, por conta do desaparecimento de Saramago. A todas respondi que estava serena, embora sinta muitíssimo a morte desse homem extraordinariamente lúcido. Muitos escritores marcaram a minha vida, nenhum como ele. Em 1987, fiz, na Ufba, uma palestra sobre "Memorial do Convento". Em abril do ano seguinte, apresentei comunicação sobre o mesmo livro, num Congresso de literaturas em língua portuguesa, realizado na USP. Estava nervosa. São Paulo esfriara bastante e eu tinha crises de tosses terríveis. Ao chegar na sala, alguém perguntou se falaria sobre Saramago. Confirmei. Então a moça indicou-me o senhor, sentado na primeira fila. Era ele, o escritor português, ainda pouco conhecido no Brasil. Tremi, mas a tosse não veio. Quando acabei de falar, Saramago e Pilar del Rio - com quem casara havia pouco tempo - vieram cumprimentar-me. Gostaram! Solicitaram o meu texto. À noite, pedi que autografasse o meu exemplar do "Memorial". Declarando, com generosidade, a sua admiração e a sua estima, Saramago agradecia-me sensibilidade e inteligência, acrescentando: "se tal pode ser agradecido". Pela primeira vez, eu falara fora da Bahia. Foi um batismo de fogo. Reencontrei o escritor em outras três ocasiões. Em 1990, presenciei, já como doutoranda da USP, a sua magnífica aula sobre Literatura e História. Consegui que fizesse dedicatória no meu exemplar de "Objecto Quase". Em artigo sobre a sua obra, comento "Desforra", conto dessa coletânea,onde também se encontra "O centauro". Em mais de uma oportunidade, ouvi Saramago dizer que, entre todos os textos que escrevera, preferia esse. Trata-se da história do último centauro. Narrando o momento doloroso em que o homem é separado do cavalo, Saramago grifa o nosso afastamento da natureza. Sem dúvida, o motivo está no centro da sua literatura.
Revi Saramago, logo após o anúncio do NobeL, no Congresso da Associaçào Internacional de Lusitanistas, realizado no Rio de Janeiro. Ele receberia o título de Doutor Honoris Causa, pela Universidade Federal Fluminense. Pouco antes de entrar no ônibus que me conduziria a Niterói, fui a uma banca de revistas e lá o encontrei. Conversamos um pouquinho, fiquei feliz. Na cerimônia solene, foi homenageado por uma orquestra fluminense. A regência ficava a cargo de uma mulher, loura e vibrante. Não me escapou o fascínio no olhar do escritor. Anos mais tarde, ao ler "As Intermitências da morte", lembrei-me bastante da cena. O romance de 2005 é sensacional, embora pouco compreendido pela crítica. Dividido em duas partes, tem a segunda centrada na vida de um músico. Diante da orquestra, a morte, em forma de mulher, deslumbra-se, como eu vira deslumbrar-se o autor, ante a bela regente. Ao receber o título, em Niterói, Saramago fez um discurso brilhante. Comovida, pedi que jamais calasse, que usasse o poder do Nobel, para protestar contra a retração das utopias e do humanismo, na cultura contemporânea. Emocionado, prometeu que tentaria... que estava tentando fazer aquilo mesmo que eu pedia.
Em novembro de 2000, pude reencontrá-lo, em Lisboa, no lançamento do livro "A Caverna." Novamente um discurso marcante, tesouro que guardo na memória. Pessoalmente, não mais estive com ele, embora o tenha sempre acompanhado de longe. Continuei lendo os seus livros, escrevendo sobre eles e publicando os meus comentários. Agora, terei que reler tudo, buscando novos aspectos. O universo criado por Saramago é tão complexo quanto a vida que chamamos de real.
Mas ninguém passa de serralheiro mecânico a prêmio Nobel impunemente. Ele desagradou a muitos. Não me refiro àqueles que criticam as suas posições políticas, ou as suas declarações. Penso nos que torcem o rosto para a sua obra, muitas vezes sem ter lido. Acho quase impossível não gostar de livros como "O ano da morte de Ricardo Reis", "Todos os Nomes" (a mais pungente história de amor que conheço) e "As Intermitências da morte" . E eu poderia ficar aqui registrando, a noite inteira, a riqueza que acho na escrita do autor português. Seria cansativo. Destaco dois aspectos. O primeiro é o seu humanismo. O amor à humanidade toma todo o espaço da sua obra. Sua literatura é uma longa louvação às criações humanas, ao trabalho, à arte. O segundo é a fé depositada no laço entre mulher e homem.
Encerro esta declaração de amor a Saramago, retomando o meu ponto de partida. Sentindo dor pela morte do escritor português, fico serena, ao lembrar as palavras que ele dirigiu a Pilar del Rio. Foram mais ou menos assim: "se eu tivesse morrido antes de conhecer-te, aos 63 anos, morreria muito mais velho do que serei, no dia em que me fôr." Não é preciso lamentar a ausência desse homem excepcional, que conseguiu morrer aos 87 anos, no esplendor da juventude. Basta que o admiremos. Mirella Márcia