Obrigada, meu pai

A Herbert Côrtes Vieira Lima.

            Vital e, por isso mesmo, barulhento, chegado a gritos de alegria e a berros de protesto, meu pai, numa manhã de primavera, abraçou-me e depois me conduziu a um barco que invadiu o azul. Quando a praia era quase um risco no horizonte, Seu Herbert atou-me às suas costas e mergulhou.  Embora eu ainda viva a sensação dessa descida, compreendo, hoje, que não fomos muito fundo. Olhávamos para baixo. Meu pai apontava detalhes de um mundo diferente. Pequenos peixes amarelos nadavam em grupo, perto de nós. Mais adiante, no sentido vertical, estavam os maiores, alguns prateados, outros vermelhos. No ir e vir, para que respirássemos, as ondas impunham deslocamento, de modo que novos cantos surgiam: pedras cobertas de limo, pinaúnas, clareiras luminosas de areia. Sabia meu pai que marcava a minha visão do universo? Certamente. Mostrava tudo, com atenção minuciosa, como se quisesse dar-me a posse do mar; como se, munidos daqueles óculos que faziam enxergar dentro da água, os olhos devessem absorver a alma do oceano. Depois, fiquei no barco, aguardando que o meu pai regressasse de um mergulho exclusivamente seu.
           A prática repetiu-se por vezes incontáveis. Descobri arraias imensas, polvos bailarinos, a beleza da água viva, a corrida das lagostas. Afeiçoei-me à agilidade da barracuda e elegi o pampo da espinha mole como o peixe mais elegante que há. Vibram em mim todas as lembranças. No entanto, apesar de vivido nos primórdios da existência, o impacto gerado na hora da descoberta tem especial nitidez. As palavras já exerciam sobre mim o seu potente magnetismo. Talvez por isso, o silêncio dos peixes tenha sido bem mais do que um susto; na verdade, foi um imenso assombro. Mudos, eles afirmavam um poder alheio a tudo que antes eu conhecera. Perfeitos em seu silêncio, permaneciam indiferentes à minha escola, à minha rua, à feira, aos sermões do padre, às notícias que inquietavam minha infância.  Até hoje essa visão é um socorro que esvazia tormentos, deles retirando consistência. Tive, naquela remota primavera, a minha primeira experiência de elevação em abismo.
        Vital, chegado a longas conversas, a contar piadas e a dar conselhos, o meu velho pai, numa certa noite de setembro, abraçou-se comigo, segredando-me, comovidamente, três palavras. No outro dia, calou-se. Desde então, não faz gestos, discursa apenas com o olhar profundo que decifro até onde posso. Atada a ele por amor, eu imergi, mas, compreendendo também as dimensões individuais do seu mergulho, aguardo que as palavras de Seu Herbert ecoem novamente na casa em que morávamos juntos, desde 2003. Vivo a experiência com atenção e assombro. É a sua segunda lição de silêncio.